sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Escutatória


O texto reproduzido aqui foi enviado pela amiga Jamile Attiê e despertou minha atenção logo a partir do título inusitado: Escutatória.

De tão interessante e útil, resolvi partilhá-lo.


Escutatória


Do escritor mineiro *RUBEM ALVES*

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.

Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, também ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as idéias estranhas.).

Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades.

Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado".

Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou".

Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou". E assim vai a reunião.
Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.
Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Mas, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia que, de tão linda, nos faz chorar.
Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

Crédito: a foto utilizada como ilustração é de divulgação do site oficial da Ilha da Madeira - http://www.madeiratourism.org/

Um comentário:

Hanna disse...

Que coisa instigante é o silêncio...que eloqüência dos sentidos. E como deve ser difícil silenciar o pensamento para absorver o que foi dito, sem causar a impaciência de quem está habituado a ter respostas. E como o silêncio pode ser abordado por infinitos lados... como uma ilha, como uma bolha de sabão. Veja esse comentário que alguém postou no meu blog, a propósito de um texto que fiz sobre o tema:

"Em nosso universo material, o silêncio não existe...
É como a escuridão, ausência de luz;
É como o frio, carência de calor;
É como a maldade, negação do bem;

O silêncio é um discurso quintessencial.
É o espaço que dá sentido às palavras, a pausa que harmoniza as melodias, a mudez que nos toca a inspiração.

"SILÊNCIOS DE QUINTANA"

por Marcuso P.G. Comparato