quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Apenas associações de idéias


Um mistério insolúvel, para mim, é o poder que algumas palavras têm para desencadear associações de idéias. Uma delas, bem simples, é a palavra leite. O primeiro alimento dos mamíferos, cinco letras que compõem um som que qualquer criança é capaz de pronunciar mal aprende a falar, sempre me despertou associações de idéias agradáveis.

A simples lembrança do café com leite quentinho de manhã, antes de ir para a escola, ou o copo de leite gelado com que, já adulto, muitas vezes substituí uma refeição na pressa de cumprir compromissos, até pouco tempo me remetiam a sensações gustativas prazerosas.

Ao pensar na palavra leite, sempre me vieram à mente cenas bucólicas. Vacas sendo ordenhadas antes do nascer do sol, deitadas à sombra de uma árvore para fugir do calor do meio-dia ou voltando em passos cadenciados para o curral ao anoitecer. Muitas vezes com guizos marcando a lentidão da marcha.

Um pouco mais de abstração me levava a pensar na Via Láctea, a galáxia que abriga nosso ridículo sistema solar frente à imensidão do universo. Tempos mais tarde, após assistir a uma obra-prima de Luís Buñuel, La Voie Lactée, nunca mais dissociei a palavra leite do estranho caminho que leva a Santiago de Compostela (corruptela de Campus Stelae em latim, o Campo das Estrelas).

Nem mesmo a ácida crítica de Dostoïevski ao hábito da sociedade francesa de “boire du lait sur l' herbe fraiche”, para ele o supra-sumo da felicidade burguesa, era capaz de turvar minha visão idílica da palavra leite.

A bem da verdade, devo admitir que os primeiros e os últimos versos de “A Morte do Leiteiro", de Carlos Drummond de Andrade, sempre me causaram certo desconforto.

Há pouco leite no país,

é preciso entregá-lo cedo.

Há muita sede no país,

é preciso entregá-lo cedo.

Há no país uma legenda,

que ladrão se mata com tiro.

( ....... )

Da garrafa estilhaçada,

no ladrilho já sereno

escorre uma coisa espessa

que é leite, sangue… não sei.

Por entre objetos confusos,

mal redimidos da noite,

duas cores se procuram,

suavemente se tocam,

amorosamente se enlaçam,

formando um terceiro tom

a que chamamos aurora.

Em tempos de violência crescente, de medo e de propostas cada vez mais radicais, a morte do pobre leiteiro, confundido com um ladrão na madrugada e abatido a tiros, torna-se mais real e dramática, que nem o terceiro tom evocado pelo poeta consegue atenuar.

Para agravar a situação, o noticiário nos dá conta, em grandes manchetes, que o leite consumido por crianças e idosos, que nele têm a principal fonte de cálcio, agora conta com novos complementos: água oxigenada e soda cáustica.

Adeus sensações gustativas prazerosas, adeus imagens bucólicas, adeus considerações filosóficas sobre a pequenez do ser humano frente ao universo, adeus Buñuel...

E, como se não bastasse, o silêncio.

O silêncio que, rotineiramente, se segue às grandes denúncias, invertendo a ordem do ditado popular segundo o qual a calmaria precede a tempestade.

Alguém sabe me informar se já é possível voltar a beber leite e ter o direito de fazer novas associações de idéias agradáveis?

3 comentários:

Joseti Marques disse...

Adorei o texto. Parabéns. Bjs

Unknown disse...

Roberto diante de tudo que estamos vivendo,a minha opinião continua sendo sempre a mesma.Doe-se.
"Dar é crescer,qdº abrimos as mãos para dar algo,crescemos ,primeiro através de nossos dedos estendidos e depois da coisa dada na alma de quem a recebeu, tornando-nos assim cada vez maiores .Roberto,Sou mulher e mãe no meio seio tem sempre o calor do amor e da doação.Parabéns !!!

Renato Sigiliano disse...

Roberto,

O que sei é que o homem é o único mamífero que, depois de desmamar, continua bebendo leite. Outra coisa que sei é que há muitos anos eles colocam soda caústica no leite. Meu pai trabalhou como carreteiro numa cooperativa leiteira durante dez anos. Na época havia poucos refrigeradores e, às vezes, o leite era descartado no rio, que ficava branco. Como sabe, Muriaé é uma importante região produtora de leite. Aqui, graças à ação da Parmalat e Tetapak (será que este teta é de têta?), a embalagem chegou a custar mais caro que o próprio produto, o leite. Um absurdo, né? Outra coisa interessante é compararmos o preço do leite com o da cerveja. Por último, para quem precisa repor as reservas, a abóbora tem muito mais cálcio que o leite e excelente para quem sofre de osteoporose. Também sei que o leite de cabra tem mais proteínas que o de vaca. Mas o leite de rata tem mais proteínas que todos eles. Esta é só pra quem precisa de proteínas. Abraço.