quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Pô...e agora?


Até que criar o blog não foi tão difícil. Mesmo para quem tem preguiça de ler manuais de instruções e resolve partir direto para as tentativas e erros, acabou dando certo. Mas, e agora? Bem que me avisaram que essa história de blog é como filho. Dá alegrias, prazeres, faz companhia, mas tem que cuidar, alimentar, educar, vigiar...

Como começar a alimentar esse novo filho? Até que um clarão surgiu na memória. O feriado chuvoso contribuiu para relembrar coisas boas e tristes também. Luzes e sombras associadas numa única lembrança, a do amigo Tim Lopes, companheiro de aventuras divertidas e profissional exemplar, cuja vida e carreira foram interrompidas de forma trágica.

O texto abaixo foi escrito, a pedido de uma amiga, dois anos após a morte de Tim. Achei que seria uma boa forma de começar a cuidar desse novo filho. Homenagear o amigo saudoso e repartir com tantos que o conheceram e o admiravam um pouco dessa época tão significativa.


"ERÉNDIRA ESTABA BAÑANDO A LA ABUELA CUANDO EMPEZÓ EL VIENTO DE SU DESGRACIA."


(Da obra de Gabriel García Márquez: La Increíble y Triste Historia de la Cándida Eréndira y su Abuela Desalmada)

E O VENTO DA DESGRAÇA LEVOU O ARCANJO


Foi numa manhã de julho de 1972 que um novo estagiário de nome esquisito apareceu na redação do Globo. Mais precisamente Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, nome de batismo de um dos melhores repórteres de toda a imprensa brasileira nas últimas três décadas. A semelhança física com o cantor Tim Maia foi mais forte que o antropônimo de inspiração celestial e o arcanjo acabou virando Tim Lopes.

Trazido pelas mãos de Henrique Caban, à época o respeitado e temido homem forte do Globo, Tim foi apresentado ao chefe da reportagem policial, Vargas Júnior, para se juntar a uma equipe de profissionais tarimbados e a três outros estagiários que davam duro fazendo a "ronda" das delegacias e a "escuta" do rádio de comunicações da polícia.

A "ronda" das delegacias consistia em telefonar incessantemente para as 38 delegacias policiais que existiam então na cidade do Rio de Janeiro e perguntar se havia alguma novidade. A "escuta" do rádio era ainda mais "emocionante". Tudo que o estagiário tinha a fazer era escutar, com um fone de ouvido, as comunicações entre as viaturas policiais e as delegacias, captadas por um rádio sintonizado na faixa de onda privativa da Secretaria de Segurança Pública. Quando descobria algo interessante sua obrigação era informar ao chefe da reportagem policial que, obviamente, destacava um profissional experiente para fazer a matéria.

Naquela manhã de julho de 1972, o novo estagiário, de rosto redondo, sorriso largo e cabelos afro, vestia terno escuro e uma berrante gravata de cor lilás. Com o bom humor e a disposição que sempre o caracterizaram, Tim juntou-se aos outros três "focas": Otávio Escobar, Eduardo Varela (homônimo do primeiro acertador dos 13 pontos da Loteria Esportiva, o famoso "Dudu da Loteca") e este redator. Tim era o quarto mosqueteiro que faltava.

Em pouco tempo, o nosso "Dartagnan", nascido no Rio Grande do Sul e criado ao pé do morro da Mangueira, encarou sem reclamar a ronda das delegacias, a escuta do rádio e mostrou a que veio. Em meio às notinhas curtas sobre tríplices colisões e princípios de incêndio que os estagiários escreviam, Tim foi abrindo seu espaço com sugestões de pauta interessantes e disposição para brigar pelo direito de apurá-las e redigi-las.

O espírito investigativo, a garra para correr atrás da matéria e o texto leve e descontraído logo denunciaram o grande repórter que estava se formando. A sensibilidade e a preocupação com os "deserdados" se aliaram a uma forma até então inédita de escrever, na qual a gíria dos malandros do morro dava um tom popular e autêntico à contundência das denúncias. Além, é claro, das frases de efeito que gostava de criar. Ao se despedir dos amigos ou ao partir para uma nova empreitada, Tim jamais dizia "até logo". Reminiscência de moleque que empinava pipas no morro da Mangueira, a expressão que se tornou sua marca era: "Aí gente, vou dar linha à pipa que o vento está a favor".

Brincar com as palavras era seu esporte predileto. Afinal de contas, como ele mesmo afirmava, "só quem brinca com as palavras sabe a graça que elas têm". Brincando com as palavras, Tim escrevia as matérias que apurava com um empenho que o levava a virar noites insones, embrenhar-se em lugares hostis e transitar camuflado entre os personagens de suas reportagens.

Infelizmente, amigo Tim, naquela noite de junho de 2002 você deu linha à pipa. Mas, seja por que razões forem, o vento não estava a favor. Para você, o vento naquela noite foi o mesmo "vento da desgraça" que soprou para a Cândida Erêndira, do escritor García Márquez que você tanto admirava. E você foi arrastado para longe de nós. O consolo que nos resta é que, esteja onde estiver, você continuará sempre brincando com as palavras para denunciar as injustiças deste mundo desigual.

Roberto Ferreira

2 comentários:

Joseti Marques disse...

Que texto brilhante e contundente, já não fosse o tema tão especial. Prazer em conhecer o grande redator, que brinca a sério com as palavras.

Sandra Chaves disse...

Querido Roberto,
Que emoção ler sua recordação da chegada do Tim à redação de O Globo. Trabalhei com ele no saudoso JB da Avenida Brasil e no meu blog tem uma foto de nós todos sorrindo, num daqueles plantões de fim de ano com ceia (devia ser Natal ou Ano Novo). Depois nos encontramos de novo e depois, todos nós o perdemos.
Adorei o blog.
Um abraço,
Sandra Chaves.